Este ensaio parte de um olhar antropológico sobre Astrologia para contribuir acerca da compreensão da prática astrológica nos dias atuais. Por quê ainda se vai - ou se deve ir - a um astrólogo? Qual auxílio este indivíduo é capaz de fornecer aos nossos contemporâneos, quando existe um grande mercado de terapias psicológicas[1] mais legitimadas pela mídia e universidades por sua pretensa cientificidade?
Antes de mais nada, importa dizer, ou melhor, reportar, que as pessoas consultam astrólogos hoje como nunca. A Astrologia enquanto prática estende seu campo de possibilidades de atuação de arte divinatória à ênfase em sua dimensão terapêutica, de magia à ferramenta de RH, de consultoria matrimonial à financeira, etc. Talvez por isso ainda existam astrólogos nos dias de hoje...
Mas prosseguindo nesse esforço de argumentação, postulo aqui uma relação entre a difusão da Astrologia, em especial nas camadas médias urbanas, e a difusão dos saberes psicológicos nestes mesmos estratos[2]. Além disso, que esta relação pressupõe questões na delimitação do campo profissional de ambas as práticas; e, finalmente, que a Astrologia não precisa ser Ciência precisamente por que é Astrologia, ou seja, é um saber humano milenar, com uma racionalidade própria - Razão/racionalidade não é prerrogativa exclusiva da Ciência - presente em diversas culturas ao longo da História, portanto um saber com sua singularidade, com seus paradigmas, conceitos, campo de ação, metodologia, etc. específicos.
Muitos autores em Antropologia já trataram da difusão dos saberes 'psi' nas camadas médias urbanas[3]. Quase todas as análises convergem para o fato de que essa difusão tem correlação com o desenvolvimento de uma ideologia individualista[4] no Ocidente. A argumentação é de que, com o individualismo surge o sujeito moderno - o grande universo da psicologia. Isto é, com a valorização do indivíduo em detrimento do social, exalta-se de modo sem precedentes na história humana a esfera individual, este ser dotado de uma cultura subjetiva, de uma subjetividade, de um sujeito. Vamos aprofundar um pouco.
Estamos falando aqui de um tema notadamente antropológico. Segundo Dumont (1985), existem duas grande ideologias operantes no mundo moderno: o individualismo e o holismo[5]. O esquema abaixo nos ajudará a entender estes valores:
INDIVIDUALISMO HOLISMO
Sociedades Modernas Sociedades Tradicionais
Valor indivíduo Valor Sociedade
Valor igualdade/liberdade Valor hierarquia
Fragmentação Totalidade
De um lado, temos um conjunto de valores que dá ênfase ao indivíduo com fundamento nas noções de igualdade e liberdade ('todos são seres iguais', 'todos temos os mesmos direitos', etc.) e que vai produzir um mundo especializado, fragmentado, com complexa divisão social do trabalho.
Por outro lado, a ênfase no social em detrimento do indivíduo cria a sociedade tradicional com base na hierarquia - Dumont vai estudar o sistema de castas indiano como representativo dessa estrutura - e na noção de 'todo social', uma espécie de defesa para algo tão frágil quanto um indivíduo.
Assim, a exaltação do indivíduo produz sociedades onde o sujeito pôde se desenvolver, posto que se alimenta dos ideais de liberdade e igualdade, bem como, da busca da felicidade para tentar se aventurar em busca de alguma mobilidade social favorável.
Por outro lado, a exaltação do social cria um referencial de totalidade que fornece ao indivíduo a certeza de que há um papel para ele na cena social, mesmo que seja de um sudra, mesmo que seja assim sempre, por toda a vida, ele não se perde em aventuras que, na maior parte da vezes, são ilusões provocadas pela desigualdade das oportunidades das sociedades modernas.
Muitas análises acreditam que o sucesso e a difusão dos saberes psicológicos tenha relação com a necessidade de totalização do sujeito moderno, individualista. Assim, as práticas psicológicas seriam uma tentativa de 'recosturar' o indivíduo. Para entender melhor essa afirmação, vamos aprofundar um pouco sobre o individualismo.
O individualismo moderno pode ser esquematizado dessa forma:
Individualismo Quantitativo Individualismo Qualitativo
Século XVIII Século XIX
França Alemanha
Liberdade/igualdade Singularidade/liberdade
Razão Emoção
Iluminismo Romantismo
Racionalidade Subjetividade
Aparato jurídico-administrativo Aparato médico-psicológico
Autonomia do sujeito Sujeito que se desconhece
Dois momento e duas culturas são cruciais para o desenvolvimento do individualismo: o século XVIII e o movimento iluminista francês, que forjou uma racionalidade com bases nas concepções de liberdade e igualdade para criar o 'sujeito responsável por si'; e como uma resposta, o século XIX e o movimento romântico alemão, exaltando a singularidade individual e a diferença dava conta da impossibilidade desse sujeito se conhecer totalmente, uma vez que dentro de si, na sua vida subjetiva habitam certas pulsões que poderiam ser obscuras, violentas, 'naturais' - isto é, anti-sociais. De um lado o indivíduo senhor de si, de outro, o indivíduo alienado de si.
Este é o cenário que forma o individualismo moderno e seu sujeito, uma espécie de médico-monstro, que portanto necessita de um outro - o profissional 'psi', além do médico - para definir o que é. No que concerne à psicologia, seu sujeito é aquele que se desconhece. Ninguém é capaz de assegurar que não vá cometer um ato violento, ou ter um surto psicótico, ou um ataque epiléptico melhor explicado como possessão. Não, ao longo da vida ninguém sabe ao certo do que é capaz. Situações limites e desvios podem conduzir fatalmente qualquer um de nós ao desesperador encontro com Thanatos, e aí, nossas reações podem revelar uma face até então não exposta e um ser obscuro se manifesta... segredos da alma humana! Quem os revela?
Nesse sentido o processo psicoterapêutico tenta ser um orientação a esse sujeito alienado de si, uma referência para um enveredamento seguro nos recônditos ocultos do ser interior. Como no universo individualista o indivíduo é o valor mais importante, a proposta de totalidade, nesse caso, se dá via indivíduo[6]. Nas sociedades holistas, a totalização ocorre a partir da valorização do social, pertencer a um determinado grupo, casta ou estrato social é o que define a identidade básica do sujeito. No universo individualista somente no indivíduo pode estar referida qualquer totalidade.
Assim, considera-se que a difusão 'psi' relaciona-se ao universo individualista, em especial após o movimento contracultural. Segundo Bellah (1987) a contracultura foi um movimento de reação ao utilitarismo e à religiosidade cristã ocidental. Na busca por novas formas de religiosidade, o ocidente encontra o oriente, e como a cultura oriental é holista, portanto, não fragmentada, quando se foi em busca de uma nova religiosidade, se encontrou além disso, as artes marciais, um outra medicina, outras concepções de mundo e ser humano. O movimento contracultural é visto como uma espécie de reação romântica aos valores frios e racionais do american way of life e da guerra fria. Naqueles tempos, todos sonhavam. E o mundo nunca foi o mesmo.
A busca pelo autoconhecimento estava em moda e esta proposta de self-cultivation[7] alimentou o processo de difusão 'psi', mas também, de todo um 'complexo alternativo'[8] e apesar de não constituir nenhuma novidade, a Astrologia beneficiou-se deste contexto e vem consolidando-se como uma das suas práticas mais relevantes justamente por sua Tradição, posto que este Saber mantém mais ou menos a mesma estrutura por séculos.
Portanto, a difusão de um processo - que Castel denominou psicanalismo - se seguiu à difusão de outro - o alternativismo. Assim, postular um relação entre ambos é até ser tímido com tamanha continuidade entre eles. Mas poderíamos falar na existência de um sujeito na Astrologia? Se assim fosse como seria esse 'sujeito astrológico'?
Primeiramente podemos dizer que partimos também desse 'sujeito alienado de si', o sujeito astrológico possui o mesmo dilema: decifra-me ou devoro-te. Ele não se conhece. No entanto, o Sumo Postulado da Astrologia é justamente que o mapa de nascimento representa o 'mapa da mina' para o sujeito, ele vem informá-lo acerca das questões primordiais de sua existência e, qual verdadeira bússola, de qual caminho seguir, qual papel a desempenhar nesta Grande Cena chamada Vida.
Parece fácil, sem esforço, a solução mágica, mas não é bem assim. Apesar de considerar tudo o que foi dito antes como verdade, para que esse sujeito que se desconhece possa realmente se beneficiar pelo menos do potencial terapêutico da Astrologia, ele deve trabalhar duro no sentido de compreender como os padrões que são identificados no mapa natal realmente agem em sua vida tanto objetivamente quanto em sua subjetividade.
Nesse aspecto, podemos ver o astrólogo funcionando como psicoterapeuta perfeitamente capaz de apontar os desafios a serem enfrentados bem como os talentos natos que precisam ser postos em prática pelo indivíduo em sua vida para que ela tenha um maior sentido e lhe traga maior satisfação por ter 'cumprido seu trabalho'.
A prática da Astrologia enquanto aconselhamento é uma prática psicoterapêutica, assim como também são as Terapias Corporais, a Terapia Floral, o Renascimento, só para citar algumas, e o mesmo podemos dizer de algumas tradições religiosas onde algum sacerdote/mestre ocupe o esse papel. Astrologia é psicoterapia, mas não somente psicoterapia. Sua dimensão mágica também é importante. Relativizar o científico para, de maneira semelhantemente hierarquizante, subjugar o pensamento mágico, por exemplo, é um equívoco que nenhum astrólogo pode incorrer, mesmo que queiramos enfatizar seu aspecto terapêutico.
Regressando ao nosso sujeito astrológico, que de início se desconhece, mas que com seu mapa de nascimento, com o auxílio de um astrólogo ou mesmo, tornando-se ele um astrólogo, ingressa na proposta de self-cultivation da Astrologia, que apregoa acima de tudo o autoconhecimento - sob a lei do 'o que está no alto é como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que está no alto' - nosso sujeito, qual um Super-Homem nietzschiano movido por potência e pelo eterno retorno, ou o Agente da História em Marx rompendo com a alienação dominante, é aquele que ao buscar seu autoconhecimento alcança seu equilíbrio. Sua sensação de totalidade, de integralidade deve-se a percepção de si mesmo como um microcosmos reflexo de um macrocosmos. Em seu interior operam forças cósmicas, da natureza, bem como os aspectos socioculturais que integrados em uma visão energética de mundo compõem todos os elementos de seu holismo.
E qual a validade disto? Qual a legitimidade disto? A validade é semelhante a qualquer sistema de psicoterapia, fundamenta-se como vimos sob valores concordantes, mas por que não possui a mesma legitimação que outras técnicas que pululam em universidades? Por uma questão de defesa de campo profissional. Ora, depois de Foucault e do desenvolvimento da Antropologia, não se pode mais alegar uma questão de racionalidade. Racionalidade a Astrologia tem de sobra. Astrologia é um Saber, que merece todo respeito de todos os outros saberes. E nosso sujeito, 'tropeçava nos astros, desastrado'... ora, 'o sábio governa os astros'.
BIBLIOGRAFIA
Arroyo, S., Astrologia prática e profissão, São Paulo, Pensamento, 1986.
Bellah, R., A Nova Consciência Religiosa e a Crise da Modernidade, In: Religião e Sociedade 13/2; Rio de Janeiro; ISER/Vozes; 1986.
Cardoso Jr., E.; "Para não dizer que eu não falei das flores" - Terapia Floral e Ideologia Moderna, Dissertação de Mestrado - Instituto de Medicina Social - UERJ, Rio de Janeiro, 1997.
Cardoso Jr., E. & Mylius, R.; Racionalidades Alter-nativas, In.: Barros, J. F. (org.) Terapêuticas e Cultura, Rio de Janeiro, 1998.
Castel, R., O Psicanalismo, Rio de Janeiro, Graal, 1978.
Duarte, L., Da Vida Nervosa nas Classes Trabalhadoras Urbanas; Rio de Janeiro; Jorge Zahar/CNPq; 1986
Dumont, L., “O valor nos modernos e nos outros”; In: O Individualismo; Rio de Janeiro; Rocco; 1985.
Russo, J., O Corpo contra a Palavra; Rio de Janeiro; Editora UFRJ; 1993.
Velho, G. Individualismo e Cultura; Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editor; 2a. edição; 1987.
Vilhena, L. R.; Astrologia: um Estudo de Antropologia Social. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.
NOTAS:
[1] Falamos aqui daquelas que compõem os 'saberes psi', isto é, a psiquiatria, a psicanálise e a psicologia (acadêmica), conf. Duarte (1986) e Russo (1993).
[2] Vilhena (1988).
[3] Castel (1978), Russo (1993), Duarte (1986), etc.
[4] Falamos aqui do conjunto de valores, isto é, individualismo enfatiza o valor indivíduo. Conf. Dumont (1985).
[5] Oposto complementar do individualismo, são valores de uma sociedade/grupo tradicionais, onde o social é mais importante e apriorístico em relação ao individual.
[6] Conforme Russo (1993).
[7] Ou autocultivo, ou autoconstrução conf. Russo (1995), como o Bildung de Simmel, aquilo que orienta os projetos individuais em um campo de possibilidades socioculturais específicos.
[8] Conjunto de práticas e técnicas diversas, que oscilam do universo mágico-religioso ao terapêutico. Conf. Russo (1993).
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