sexta-feira, 10 de agosto de 2007

47 RESENHA TEXTO CLIFFORD GEERTZ

RESENHA: “Do ponto de vista nativo: a natureza da compreensão antropológica”, IN.: A Interpretação das Culturas. Clifford Geertz.
INTRODUÇÃO “O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela a Baía de Guanabara O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara pareceu-lhe uma boca banguela. E eu, menos a conhecera mais a amara? sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela, o que é uma coisa bela?” O Estrangeiro, Caetano Veloso.
Talvez a mais importante lição que um antropólogo aprende como praticante deste saber específico que é a Antropologia, seja a percepção da distinção entre olhar e ver. A Antropologia, como qualquer saber, tem seu caráter esotérico, que se revela pouco a pouco, a medida em que se vai avançando na apreensão de suas questões teóricas e metodológicas, mas, no caso específico do saber antropológico, é quando se vai a campo entender o “nativo” que se descortina o grande paradigma para o aprendiz de antropólogo: como entender o “outro”? Partindo de nossas questões e/ou interesses ou das questões e/ou interesses que este “outro” manifesta? E mais: não será nossa visão viciada, construída a partir de enigmas que nós mesmos criamos e tentamos resolver - embora comumente nem mesmo isto conseguimos -, como se o mais importante para nós fosse o exercício intelectual em si e a compreensão fosse um mero detalhe? Submergir destas questões, talvez mais ácidas do que profícuas, pode ser o penoso tributo que nós, praticantes desta arte de interpretar - de ver - o mundo, temos de pagar para termos testada nossa capacidade de crer que é possível compreender o “outro”, seja ele tão distante de nós como um Yolmo nepalês, ou tão próximo como minha vizinha que é mãe-de-santo na Umbanda. Sim, definir a Antropologia como um exercício de fé na possibilidade da intersubjetividade é o terreno - arenoso, sem dúvida - no qual erguemos nossa prática e que nos leva a “partir por mares nunca antes navegados”, atraídos por aquilo que é - ou pode ser - familiar no que nos é exótico, e pelo que é - ou pode ser - exótico no que nos é familiar. Por este motivo, a observação do “outro” constitui-se na principal modalidade de apreensão do saber antropológico. Fazer Antropologia - ou antropologizar - é aprender a ver o que nos distingue e singulariza e o que nos iguala e universaliza com relação ao objeto de nossa observação. Daí o porquê de o antropologizar implicar necessariamente em relativizar . Especialmente relativizar o olhar. O Olhar é a expressão daquela experiência cotidiana de, por exemplo, passar de ônibus pelo aterro do Flamengo ou de carro pela ponte Rio-Niterói ou, ainda, de barca da Praça XV ao Gragoatá e desfilar nossos olhos pelo mar da Baía como se estivéssemos tomados pelo samba de Paulinho da Viola que nos diz: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”, e assim fôssemos lembrando das alegrias e vicissitudes mais diversas de nossa vida, ao invés de percebermos o quanto esta Baía é poluída, o quanto os aterros a estragaram, o quanto as praias deviam ser lindas em 1500 antes do “processo civilizatório” desembarcar aqui, a antiga Pindorama. Olhar a Baía é ser “cego de tanto vê-la”, posto que a Baía é a nossa cara, faz parte de nossa identidade, está em nossa alma e por isto suscita em nós uma passionalidade. O Ver, por sua vez, necessita de um processo iniciático, pois constitui uma técnica, embora possamos também “trazer na alma”, ver implica em desenvolvimento. O ver antropológico é o olhar de um estrangeiro diante da Baía de Guanabara, capaz de racionalizar o que para nós (o “outro” deste estranho) é cartão postal ao mesmo tempo em que percebe que nós olhamos diferente. Percebe, pois, que este estranho também é um “outro” e, portanto, possui suas imagens, totens, ícones, mitos, etc., etc., que “estão em sua alma” - nada mais cultural do que aquilo que se inscreve na alma - e que são passíveis de relativização pelo olhar de outro estranho. Ver não é olhar com os olhos alheios, mas sobrepor ao seu próprio olhar a possibilidade e realidade de outros olhares. Assim, ver é um experiência interpretativa e comparativa, um exercício de relativizar nossos olhares e enquadrá-los como mais um entre os diferentes modos de olhar um mesmo objeto. Ver é tentar ir além da experiência cotidiana que comumente nos basta. Ver é a arte de olhar.
“Do ponto de vista nativo: a natureza da compreensão antropológica”.
Geertz trata da questão da compreensão em Antropologia e também de qual o papel desta disciplina no mundo de hoje, depois que os dois fenômenos ligados as energias que a criaram - a expansão do Ocidente e a difusão de uma crença salvacionista nos poderes da Ciência - passaram a sofrer uma série de questionamentos. Geertz dialoga fundamentalmente com: 1- o Positivismo, que apregoa a Ciência Positiva como a única relação cognitiva importante com a realidade externa; 2- George Herbert Mead, filósofo e psicólogo pragmatista norte-americano, que argumenta a favor de uma compreensão baseada na capacidade de “assumir o papel do outro” - um tipo de empatia. 3- Bronislaw Malinowski, antropólogo que insistia na noção de que, no trabalho de campo, a “observação participante” era indispensável pois somente fazendo o que os nativos faziam seria possível entender o que isto significaria para eles. Geertz rejeita tais teses, especialmente a de que uma sensibilidade fora do comum, uma empatia especial por parte do observador, pode servir de base à compreensão antropológica. O autor propõe, então, um método hermenêutico - ou interpretativista - em que uma interpretação se soma às outras, uma série de percepções é contrastada com outras. A fim de realizar estas comparações, Geertz focaliza seu olhar sobre as formas simbólicas que são facilmente observáveis e compreensíveis. Partindo de símbolos definidos com clareza e comparando-os uns com os outros, podemos lentamente construir uma compreensão. O texto começa relatando a demolição do mito do “antropólogo camaleão” - “um milagre de empatia”- justamente pelo homem que talvez mais se ocupou em criar este mito: B. Malinowski. Rompidos os tratados e demolidos os mitos, Geertz levanta a questão: o que acontece com o “entender” quando não é mais possível “ver com os olhos de outrem”? A verdadeira questão levantada por Malinowski ao demonstrar que, no caso dos nativos, não é preciso ser um deles para conhecê-los, seria perceber que papéis desempenham dois tipos de conceitos - conceitos próximos da experiência e conceitos distantes da experiência - na análise antropológica. Estes termos foram formulados pelo psicanalista Hans Kohut e assim definidos por Geertz: Conceitos Próximos da Experiência é aquele que um indivíduo pode por si mesmo empregar naturalmente para definir o que ele e seus companheiros vêem, pensam, imaginam, etc. e que ele compreenderia de imediato se fosse aplicado por outros da mesma maneira. Conceitos Distantes da Experiência é o que vários tipos de especialistas empregam para fazer avançar seus objetivos científicos, filosóficos, etc. A relação entre ambos conceitos é de gradação e não de oposição. Retomando, a verdadeira questão seria perceber como, em cada caso, estes dois conceitos devem ser distribuídos de modo a produzir uma interpretação do modo pelo qual um povo vive que não seja nem aprisionada dentro de seus horizontes mentais nem sistematicamente alheia “às tonalidades distintivas de sua existência”? Pensando deste modo - isto é, em termos de como a análise antropológica deve ser conduzida e seus resultados enquadrados, em vez de que constituição psíquica os antropólogos devem ter - Geertz desconstrói a noção do “ver as coisas do ponto de vista do nativo”. A tarefa antropológica seria então apreender conceitos que para outras pessoas estão próximos da experiência, e fazê-lo suficientemente bem para ligá-los de forma esclarecedora aos conceitos distantes da experiência que os teóricos formularam para captar os aspectos gerais da vida social. O jogo é, então, tentar descobrir o que ele pensam que estão fazendo. Geertz cita como exemplo deste empreendimento seu trabalho em três sociedades que pesquisou: Java, Bali e Marrocos
[1].
Sua preocupação principal era tentar determinar como as pessoas que vivem nessas sociedades se definem como pessoa, o que entre na idéia que formam da identidade de um javanês, um balinês ou um marroquino. Sempre, em cada caso, sem se imaginar como outra pessoa, mas procurando e analisando as formas simbólicas - palavras, imagens, instituições, comportamentos, etc. - em termos dos quais, em cada lugar. As pessoas realmente se representam para si mesmas ou umas para as outras. Ou seja, Geertz defende que relatos de subjetividade de outros povos podem e devem ser construídos sem se recorrer a uma capacidade “paranormal” e que o sentido que se obtém da verdadeira natureza de nossos informantes não provém da experiência da aceitação em si - a aceitação do outro em relação a nós como pessoa digna de suas confidências - mas da capacidade de construir suas formas de expressão - sistemas simbólicos - que essa aceitação permite desenvolver. Para Geertz esta experiência descrita acima constrói o papel da Antropologia no mundo de hoje: justamente auxiliar o convívio entre as pessoas e povos de todo mundo fortalecendo uma comunicação cultural no mais amplo sentido. Não somos o outro - apenas, e isto é muito, nós mesmos - mas, no exercício da coexistência, podemos entendê-lo e sermos por ele compreendido e, assim criamos o terreno para a mais humana das experiências: a troca.

[1] Este empreendimento é extremamente enriquecedor atualmente quando se discute em Antropologia a noção de pessoa. As teses dumontianas tendem a englobar dentro de um modelo único as diferentes concepções de indivíduo nas sociedades tradicionais. Analisando a noção de pessoa nesta 3 sociedades, Geertz demonstra o quão elas podem ser diferentes. Geertz atirou no que viu, acertou; atirou no que não viu e também acertou.

Nenhum comentário: