sábado, 12 de julho de 2008

683 ENTREVISTA COM CLARICE NOVAES

Léo: Como foi seu primeiro contato com Mamãe Jurema ?

Clarice: Em 1984, eu estava pesquisando sobre a Jurema, ou seja, sobre o uso de plantas medicinais em geral, junto aos Kariri-Xocó, e o pajé Francisco Suíra, falecido em 1990, me contava sobre a magia da Jurema entre eles, explicando sobre o segredo indígena em torno do uso da Jurema, já que ela era a planta mágica que os ajudava a encarar sua vida como índios contemporâneos e a seguir adiante com dignidade e poder. Pedi-lhe que me deixasse tomar a jurema e ele, a princípio, disse que não, que eu não estava preparada, que era uma força maior do que a que eu poderia tolerar. Não insisti, mas um dia ele me chamou a noite, na casa de um companheiro seu, que morava na cidade de Colégio, não na aldeia.

Quando entrei, senti um cheiro pungente no ar, misturado a cheiro de mato queimado, de fumaça, etc. Ele me disse que estavam preparando a jurema para eu tomar, assim, a queima-roupa. Falou que era uma poção "Especial" porque eu já estava aprendendo bastante. Felizmente eu não tinha jantado, pois ele me disse que era melhor tomar com estomago vazio. Não fizeram nada diferente, não cantaram, nem armaram nada, mas o pote estava na cozinha, ele disse que há dois dias estavam cozinhando aquela jurema pra mim.

Perguntei como tinha sido preparada, e como sempre, ele foi misterioso, dizendo muito laconicamente que as cascas da raiz tinham sido cozinhadas por três dias, não tinha mistura nenhuma. Eram só as cascas. Eu já tinha lido que sem misturar com outra coisa, a DMT não faria efeito, então relaxei. Por outro lado, eu tinha muita confiança em seu Francisquinho, o pajé, e sabia que ele não me poria em nenhuma situação de perigo. Ficamos em silencio durante algum tempo, e eu comecei a sentir um torpor agradável, de quem pode esperar a vida inteira por algo muito bom, muito profundo, sem mágoa, sem aflição, sem medo, sentia-me leve, isto antes de tomar a bebida.

Seu Francisquinho disse que "a fada da planta" estava ali entre nós. Quando me trouxeram o chá, foi num copo comum, como copo de café. A bebida já estava quase fria, era muito amarga, mas sem nenhum gosto especial. Todos me olhavam com um sorrisinho entre os lábios, eram uns 3 velhos, mas eu só conhecia seu Francisquinho e seu Pinto Neco, o "sogro" dele, que não era indígena, mas entendia muito sobre plantas medicinais e magia. Lembro-me de que não senti nada do que esperava, não fiquei sonolenta, nem entrei declaradamente em transe, nem vi imagens. Era tudo muito tranqüilo, uma conversa entre amigos numa noite qualquer. O pajé me disse que eu tinha que ir pra casa me deitar. Fui.

Estava hospedada na casa do agente da FUNAI em Colégio. Dormi imediatamente um sono bastante pesado. Quando acordei sentia-me "quase" normal, digo quase porque eu sou em geral uma pessoa ansiosa, que quer fazer logo as coisas, descobrir logo tudo, seguir adiante, etc. Não sou muito paciente. Pois me acordei algo letárgica, e lembro de ter ficado olhando o rio São Francisco por um bom tempo, parada na beira do rio, na rua que leva à aldeia, sem fazer absolutamente nada, algo inédito pra mim. Tive a sensação de que vi uma sereia saindo das águas e comecei a rir de mim mesma.Eu tinha visto a mesma sereia uma noite a beira do rio Xingu, depois de fumar maconha. "Essa sereia me persegue", pensei. Mas era uma sensação boa, de quem faz uma descoberta inédita. De repente, eu soube o quão importante era a jurema pra eles. Soube, com uma certeza absoluta, que sem a jurema eles iriam acabar perdendo tudo, se destrilhando de seu destino indígena. Eu ouvia uma cantiga dentro do meu coração, algo que não consegui jamais decifrar ou reproduzir, realmente como se fosse o canto de uma sereia. Soube inclusive que eu jamais poderia passar adiante o canto, mesmo que pudesse reproduzi-lo, pois era algo muito profundo, muito recôndito, algo perdido pelos ancestrais, pois era um presente que eu recebia só pra mim, pra mais ninguém.

Quando reencontrei seu Francisquinho, ele me disse que dali por diante eu teria sonhos premonitórios, que minha visão ia se abrir e que um dia eu acabaria entendendo tudo sobre eles, sobre os índios, mas que era gradual.

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