domingo, 13 de abril de 2008

529 HOWARD BECKER E GILBERTO VELHO

G.V. - Como músico de jazz, você foi pessoalmente ofendido.

- Fiquei ofendido, não apenas politicamente, mas realmente ofendido. Mas também achei que ele não sabia do que estava falando, não conhecia nada sobre esse tipo de música. Porque se conhecesse, não teria escrito aquilo. Afinal, era uma época em que muitas outras pessoas na Europa, especialmente na França, entendiam muito bem a importância musical do jazz. Adorno praticava um tipo de elitismo do qual eu realmente não gostava. Toda a teoria da sociedade de massas que homens como Adorno criaram.reflete exatamente, uma visão elitista das culturas da classe trabalhadora. Apesar de não ter lido todos os seus trabalhos, eu não estava de acordo com a opinião deles. Eu achava que eu estava certo e queria fazer sociologia da arte, mas a meu modo. E encontrei certas coisas em três ou quatro trabalhos, não de sociologia, que me foram de grande ajuda. O primeiro autor foi Gombrich, historiador da arte britânico, que escreveu um livro chamado Art and lllusion, 15 em que enfatizou o papel das convenções e representações, os modos convencionais de representar a realidade: você pode representar a realidade através de uma imagem bidimensional, utilizando técnicas de modo que qualquer pessoa possa decifrar e entender o que está sendo representado. O segundo autor foi Leonard Meyer, musicólogo da Universidade de Chicago, que escreveu Emotion and Meaning in Music. 16 Aí ele mostra como o desenvolvimento das diversas convenções musicais tornou possíveis todos os efeitos emocionais que a música provoca. Há ainda o trabalho de uma aluna de literatura de Meyer, Barbara R. Smith, chamado Poetic Closure, 17 que é mais fácil de explicar. Barbara Smith faz a seguinte pergunta: "Como você sabe que um poema terminou? Apenas pelo fato de que não há mais nada escrito? Afinal, o poema poderia ser maior, e a gráfica pode ter cometido um erro, cortando-o." Pois há outros meios de se saber que um poema terminou, e isso graças às convenções. Se você tem, por exemplo, um poema no estilo de John Donne, o poeta metafísico, que tece uma elaborada elucubração lógica, quando a elucubração chega ao fim, o poema também termina. Existem também certas formas poéticas, como o soneto, em que, quando se chega ao 14 o. verso, sabe-se que o poema acabou. Há ainda coisas mais sutis. Em inglês é muito comum o último verso de um poema ser composto de palavras de uma sílaba. É também muito comum o último verso conter palavras que indicam o fim, como sleep, death, rest, coisas assim. Todos esses recursos podem ser usados por um poeta para dar a você a sensação de que o poema chegou ao fim. Esses recursos também permitem dar a ilusão de que se chegou ao fim, para então ocorrer uma mudança de rumo. Nesse caso, há um falso fim e um fim real. Se for um falso fim, deve haver algum tipo de indicação. O fato é que eu achei isso crucial, porque a idéia de convenção pode ser traduzida para algumas idéias e conceitos que as ciências sociais usam, como norma, regra etc. A compreensão do significado dessas palavras é compartilhada por todos. Isso me permitiu estabelecer a ligação e significou que eu poderia utilizar os trabalhos desses autores, adaptando-os para o estudo da organização social. Comecei então a ler muito, todos os outros estudos que haviam sido feitos sobre o tema - outro trabalho importante é o do historiador da arte inglês Michael Baxandall sobre a pintura renascentista italiana. 18 Ele mostra como as convenções eram estabelecidas e como as pessoas eram capazes de decifrá-las. Os pintores utilizavam recursos e truques que eram compreensíveis, por exemplo, para os comerciantes contemporâneos, que em geral estavam pagando pelo seu trabalho. Fiz uma pesquisa empírica sobre todo esse material, procurei integrá-lo, e isso resultou no livro Art Worlds19, que estou utilizando agora no curso de sociologia da arte que estou dando com Gilberto Velho no Museu Nacional.

G.V. - Com Outsiders, você se tornou conhecido como o grande teórico da área do desvio. Mas além disso, você também é conhecido como um teórico na área do interacionismo em geral. Basta lembrar seu livro Uma teoria da ação coletiva 20. Como você vê a importância de seu papel como teórico? - Acho que o papel importante que posso ter desempenhado foi o de ter fornecido modelos de pesquisa. Um grande número de artigos nos Estados Unidos, e mesmo em outros países, tem títulos do tipo "Becoming a marihuana user", com verbos no gerúndio: tomando-se isso ou aquilo. Meu artigo forneceu portanto um modelo, era uma maneira de organizar as observações. E também teve, naturalmente, uma importância teórica. Basicamente, indicava a noção de processo. As coisas não acontecem porque acontecem, não são automáticas. Não se tem uma determinada combinação de variáveis e, automaticamente, um determinado resultado.

G.V. - Você está fazendo teoria.... - E você está sendo implicante... Mas o fato é que este é um modelo para se investigar as coisas como processo. E acho que isso é fundamental. O outro lado disso é que noções como "cultura estudantil" fornecem uma outra espécie de modelo para o tipo de atividade organizada dentro da qual as pessoas experimentam os processos. As pessoas interagindo de maneira regular, numa rotina, têm certas maneiras padronizadas de fazer as coisas, o que não significa uma ação automática. Elas não agem de determinada maneira porque esta é a sua cultura, porque estão numa certa posição social e não têm escolha, mas estas são as condições de sua ação e elas reagem a isso de uma maneira determinada. Logo, é útil entender o processo de desenvolvimento de certas atividades, incluindo-se aí a compreensão de que as pessoas reagirão de uma maneira esperada, de uma forma em princípio previsível. Em outras palavras, a compreensão de que essas formas de ação coletiva ocorrem porque as pessoas aprenderam, através de um determinado processo, que é assim que se faz. É muito mais fácil fazer desse modo do que inventar uma maneira nova de fazer. Isso não significa, porém, que novas maneiras de fazer as coisas não sejam, criadas. Todo dia são criadas novas formas, mas toda novidade tem um preço. É sempre mais fácil fazer as coisas do jeito que todo o mundo faz, e um simples exemplo disso é o uso do idioma do país. Qualquer pessoa, nos Estados Unidos ou no Brasil, pode falar a língua que quiser, mas talvez não seja entendida. O preço a pagar é alto. Você também pode inventar uma nova língua se quiser, mas certamente ninguém irá entendê-lo. E isso é fantástico, porque nas artes as pessoas fazem muito isso, muitas vezes inventam linguagens e freqüentemente pagam seu preço. Ninguém as entende e seu trabalho resulta em nada. Algumas vezes se consegue convencer as pessoas de que vale a pena esforçar-se para aprender uma nova língua. Mas em geral, quando alguém inventa uma nova língua, pode ser difícil conseguir patrocinadores para o trabalho artístico, e isso pode tornar o trabalho impossível, ou muito difícil. Mas há pessoas que conseguem persuadir as outras a fazerem as coisas do jeito que elas querem. Tudo depende. É sabido, por exemplo, que os músicos das orquestras sinfônicas estão entre as pessoas mais conservadoras, para não dizer reacionárias, do mundo. Eles gostam de fazer as coisas do modo como sabem fazer. Não querem fazer coisas que signifiquem mais trabalho. Pelo menos é essa a opinião dos compositores contemporâneos. É bastante conhecido o fato de que esses músicos podem até sabotar obras que não aprovam. E os novos compositores, quando produzem suas obras, sabem disso. Eles podem até produzir novas obras contando com a possibilidade de conseguir outros músicos para executá-las. Acho que este é um ponto teórico importante, porque freqüentemente as pessoas consideram a influência da estrutura social como mais opressiva do que ela é: "Você não pode compor música de forma nova." Sim, você pode. Será mais difícil, você poderá ter que recrutar pessoas, ensiná-las, ou seja, terá muito mais trabalho do que se compusesse da forma conhecida. Acho que este é um tipo de perspectiva teórica.

A.A. - Como você veio parar no Brasil? - Vim ao Brasil pela primeira vez em 1976. Eu tinha um amigo que estava aqui na Fundação Ford e que também se tomou amigo de Gilberto Velho. Ele descobriu que Gilberto tinha interesse em estudos sobre desvio, telefonou-me para os Estados Unidos e disse que eu deveria vir para cá, pois havia aqui um antropólogo, Gilberto, que estava interessado nas mesmas coisas que eu. Ele poderia organizar minha vinda através da Fundação Ford. Respondi que não poderia vir, disse a verdade: era uma vergonha, mas eu mal sabia onde ficava o Brasil e não falava uma palavra de português. Seria ridículo. Mas esse amigo me disse que Gilberto iria passar as férias de janeiro nos Estados Unidos. Gilberto me mandou dois livros Utopia urbana e Desvio e divergência, 21 e pensei: só sei alguns palavrões em espanhol, mas aqui está esse eminente cavalheiro que virá aos Estados Unidos, e terei que ler esses livros. Arranjei um dicionário e finalmente consegui lê-los. Gilberto afinal foi para Chicago e lá ficou um bom tempo. As vezes não conseguia sair do quarto, porque tinha medo de morrer na neve... Felizmente sobreviveu. Reiterou o convite para eu vir ao Brasil, eu tinha uma colega na Northwestern, Janet Lever, que havia pesquisado aqui e tinha escrito um bom livro sobre a sociologia do futebol, ela entendeu o meu problema, levou-me para o laboratório de línguas e disse que eu queria aprender português. Assim, durante o ano de 1976, toda manhã eu ouvia as fitas que eles tinham no laboratório. Em outubro vim ao Brasil, para dar um curso no Museu Nacional. Não sabia falar português direito, mas conseguia ler. Li uma porção de teses de mestrado do PPGAS do Museu Nacional - ainda não existia o curso de doutorado -, li vários outros trabalhos, fiquei completamente envolvido pela música popular e o jazz brasileiros, que eu já conhecia um pouco...

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