domingo, 13 de abril de 2008

530 HOWARD BECKER E GILBERTO VELHO

G.V. - Simmel não é considerado um teórico? - Mas esse as pessoas não lêem. Nos meus cursos, meus alunos têm que ler porque eu insisto. Mas o que predomina é uma espécie de jogo de palavras: como podemos estabelecer uma relação entre este conceito de Durkheim e este conceito de Weber? Não vejo o menor interesse nisso.

G.V. - Vamos voltar agora para a sua carreira pessoal. Você estudou com Lloyd Warner e conheceu a antropologia social britânica. Qual foi a importância da antropologia social em seu trabalho? - Comecei minhas pesquisas fazendo minha tese de mestrado sobre os músicos de jazz, que foi tremendamente influenciada pela antropologia social. Era o que eu considerava como o método de pesquisa mais importante: ir a um lugar, conhecer as pessoas e observar cuidadosamente o que faziam, não só o que diziam. Warner tinha umas fórmulas muito simples, realmente maravilhosas. Ele dizia: "Quando estiver para acontecer um evento importante. No lugar que você está estudando, primeiro pergunte a todos o que vai acontecer. Então, observe o que aconteceu. Depois pergunte às pessoas o que aconteceu." Faço isso o tempo todo, para mim essa é uma regra fundamental. Depois de terminar o mestrado, fui trabalhar como assistente de Everett Hughes. Ele estava estudando as escolas públicas de Chicago, o que tinha a ver com a questão racial, pois as escolas estavam muito segregadas na época. Wirth e Hughes estavam colaborando em uma pesquisa para mostrar como isso acontecia e o que poderia ser feito a esse respeito. Meu trabalho era entrevistar os professores das escolas. Visitei 60 escolas e escrevi minha tese de doutorado sobre o trabalho desses professores. Tornei-me então o Dr. Becker e me perguntei: e agora? Nessa época eu ainda estava tocando piano, e essa era a atividade mais importante para mim. Mas em dado momento, comecei a pensar: "Afinal estudei todo esse tempo, e talvez deva admitir que as pessoas com quem trabalho nos lugares onde toco piano não são tão simpáticas assim, são meio mafiosas, meio criminosas. Talvez seja melhor seguir o caminho acadêmico." Devo dizer que sou meio desaforado, meio respondão, e que aquelas pessoas com quem eu convivia nos bares não eram de levar respostas para casa. Pensei que estaria melhor fazendo pesquisa, e consegui uma série de empregos onde me pagavam para fazer pesquisa empírica. Trabalhei para o Institute of Juvenile Research, em Chicago, que era dirigido por Clifford Shaw, ex-aluno de Robert Park, e estudei o uso da maconha. Entrevistei uma série de pessoas, nem lembro quantas, e escrevi um artigo que mais tarde se tornou famoso, chamado "Becoming a marihuana user". Hoje está incluído em meu livro Outsiders. 12 E este é um episódio interessante na história da sociologia. Quando escrevi o artigo, ele foi considerado uma curiosidade. Era interessante, mas não importante, porque a maconha tampouco era um assunto importante na época, em 1953. Mas nos anos 60 a maconha tomou-se importante. Nos anos 50 era tida provavelmente como coisa de negros, mexicanos, músicos e outros tipos que não eram considerados importantes, mas nos 60, os jovens de classe média começaram a fazer uso dela. Então, de repente, meu artigo, que continuava o mesmo, passou acidentalmente a ser importante, e eu me senti o avô das pesquisas nessa área. Nesse artigo eu desenvolvia idéias sobre desvio que mais tarde iriam aparecer em meu livro Outsiders. Escrevi umas oitenta ou noventa páginas que continham todas as idéias básicas, mas não sabia o que fazer com aquilo, não conseguia ver aquilo colocado no mundo das ciências sociais. Não publiquei o artigo, mas sete ou oito anos depois mencionei-o a um amigo, ele me pediu para ler, disse que era interessante e que eu deveria publicá-lo. Reuni-o então a outros artigos sobre músicos e publiquei Outsiders, em 1963. Portanto, o primeiro capítulo desse livro foi escrito no início dos anos 50... Mas a,coisa mais importante que fiz naquela época foram dois grandes trabalhos de campo na Universidade de Kansas. O primeiro deles foi com estudantes de pós-graduação em medicina. Eu e meus colegas de equipe passamos três anos estudando os estudantes, de uma maneira tipicamente antropológica. Dia após dia eu pesquisava sobre eles: assistia às aulas com eles, a todo lugar a que iam, eu ia também. Quando acabei essa pesquisa e estava redigindo um texto para publicar, comecei outra, na mesma escola, dessa vez com os estudantes da graduação. Também foi um grande estudo, com entrevistas a várias pessoas, Escrevemos sobre isso e preparamos dois livros, que foram publicados nos anos 60: Boys in White e Making the Grade.13 Ambos centravam-se no conceito de cultura estudantil: o que os estudantes pensavam, que idéias tinham em comum, em que bases organizavam suas vidas. Portanto, de 1951, quando terminei o doutorado, até 1965, estive trabalhando em várias instituições de pesquisa, sem dar aulas na universidade. Era uma boa época para se fazer isso, pois havia muito dinheiro para pesquisa, era mais fácil conseguir apoio. O governo federal e várias fundações privadas estavam aplicando grandes somas nas pesquisas em ciências sociais. Enquanto meus amigos viviam os problemas da carreira acadêmica nos Estados Unidos, preocupando-se em saber se seriam promovidos, quando iriam obter estabilidade etc., e tendo que fazer pesquisa enquanto davam aulas, eu não ensinei e fui pago para trabalhar em tempo integral em pesquisa. Consegui publicar quase todos os trabalhos que escrevi nessa época e finalmente, em 1965, comecei minha carreira de professor entrando para a Northwestem University - devo dizer que o chefe do departamento que me contratou, Raymond Mack, era baterista, e já nos conhecíamos como músicos. Foi assim que me tomei professor da Northwestem. Mas já fui para lá como professor titular, no topo da carreira, e me livrei de todo aquele início chato. Odeio situações hierárquicas, não gosto de estar no topo, no meio, em lugar nenhum. A idéia de estar numa posição em que a administração da universidade pode decidir se sou ou não bom o suficiente para ser mantido não me agrada, não é para mim. Portanto, eu só poderia entrar para um lugar onde esses problemas não se colocassem. Eu via os meus amigos sofrendo por essas coisas.

G.V. - Mas antes da Noríhwestern você não ensinou em Stanford? - Não exatamente. Fui para a Universidade de Stanford em 1962 e fiquei lá três anos. Era ligado ao Departamento de Sociologia, mas não era um professor regular. Meu lugar, realmente, era no Instituto de Pesquisas da universidade. Ao fim de um ano, me afastei do Departamento de Sociologia e fiquei no Instituto em tempo integral. Comecei a lecionar realmente em 1965, na Northwestern, e tive todos aqueles problemas terríveis de um professor iniciante, de preparar aulas... Eu não sabia ensinar. Sabia fazer pesquisa, mas não ensinar. Foi horrível, mas de alguma maneira sobrevivi. Era um departamento maravilhoso.

G.V. - Como você compara os departamentos de sociologia da Universidade de Chicago e da Northwestern? - O departamento da Northwestem era muito eclético, tinha gente de todas as tendências, tanto em teoria como em pesquisa. E havia um princípio maravilhoso: o respeito mútuo. É comum a gente ver lutas entre facções, politicagem, brigas, pessoas se odiando entre si, mas na, Northwestern havia um grande respeito pelo trabalho do outro. Era um departamento pluralista, e em certo sentido havia diferenças suficientes para se transformarem em motivo de discordância, mas nós decidimos que também tínhamos muitos pontos em comum e resolvemos olhar para eles em lugar de enfatizar as diferenças. Por isso a Northwestern tem sido um lugar maravilhoso para se dar aulas e fazer trabalhos de diversos tipos. Em 1980, eu já estava lá havia quase 15 anos, trabalhando quase sempre com educação, e comecei a ficar completamente entediado. Quando começava uma nova pesquisa, depois de três dias eu tinha a impressão de que já sabia tudo o que ia acontecer. Sabia qual era a pergunta e sabia qual era a resposta. Quer isso fosse verdade, quer não, era uma sensação desagradável. Decidi então que havia chegado a hora de mudar de assunto, e fiquei muito interessado em sociologia da arte. A sociologia da arte era praticamente inexistente nos Estados Unidos, era um ramo da árvore européia. E a sociologia da arte européia, representada por autores como Luckàcs, Adorno, Lucien Goldmann, não era a sociologia como eu entendia.

G.V. - Na verdade, era uma sociologia da literatura. - Da música também, no caso de Adorno. Mas para Adorno a sociologia da música quer dizer "por que Schõnberg é melhor do que os outros". Logo me irritei com Adorno, porque um dos seus primeiros artigos traduzidos para o inglês era sobre jazz. 14 E não era apenas um artigo contra o jazz, era um artigo racista. Ele quase falava da música negra como "música da selva" - acho que usava essa expressão. Era horrível, e eu pensei: "Esse sujeito não sabe nada. Qualquer pessoa poderia cometer um erro desses, que é um erro muito sério. Ou ele é um tolo ou é um preguiçoso que não faz o seu trabalho direito, não sabe do que está falando." É uma coisa horrível de se dizer sobre ele, mas eu disse. Ele foi muito ofensivo.

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