domingo, 13 de abril de 2008

538 HOWARD BECKER E GILBERTO VELHO

UMA ENTREVISTA COM HOWARD S. BECKER*

* Esta entrevista foi transcrita e traduzida por Lia Carneiro da Cunha, revista por Gilberto Velho e editada por Dora Rocha Flasksman.

Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n.5, 1990, p.114-136.

Howard S. Becker, professor do Departamento de Sociologia da Northwestern University, em Evanston, Illinois, é um dos mais influentes cientistas sociais contemporâneos. Sem dúvida, é o maior expoente vivo da Escola de Chicago, fenômeno científico e cultural que analisa nesta entrevista. Sua área de atuação é abrangente e diversificada, incluindo trabalhos sobre desvio, ocupações, educação e sociologia da arte. Suas reflexões sobre metodologia e trabalho de campo são cada vez mais difundidas nas ciências humanas como um todo. Sua experiência como pianista de jazz profissional durante a juventude marcou-o de forma indelével, fazendo com que, nos seus próprios termos, estabelecesse uma relação muito singular com a vida acadêmica. Hoje, boa parte de sua obra está traduzida para o francês, o espanhol, o italiano e o alemão. Em 1977 foi publicada no Brasil sua coletânea Uma teoria da ação coletiva, há muito esgotada. Atualmente, pelo menos mais dois livros seus estão sendo preparados para lançamento no nosso país. Esta entrevista foi realizada em abril de 1990, por ocasião de sua terceira visita ao Brasil, para um curso no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, como bolsista da Fundação Fullbright. Dela participaram Gilberto Velho, do PPGAS do Museu Nacional, Alzira Alves de Abreu, do Cpdoc/FGV, Maria Ignez Duque Estrada e Vera P. Costa, da revista Ciência Hoje.

G.V. – Como foi o início da sua vida? Sua família, seus estudos, a escolha da carreira? - Nasci em Chicago em 1928, numa família judia de classe média. Meu pai havia nascido no gueto judeu da cidade e trabalhava com propaganda, era um autodidata. Quando terminei o segundo ano do curso colegial, que na verdade tinha quatro anos, prestei exame para uma bolsa de estudos na Universidade de Chicago. Naquela época podia-se começar o college, que corresponde ao curso básico de graduação brasileiro, no momento em que normalmente se entraria para o terceiro colegial. Fiz assim o concurso para a tal bolsa, passei, e sair da escola para a universidade foi uma experiência maravilhosa, foi como sair da prisão. Estávamos em plena guerra, de modo que havia poucos estudantes, pois a maioria dos jovens estava no Exército. Minha turma devia ter naquela época talvez trezentos alunos, era muito pequena. Para mim foi uma experiência intelectual fantástica começar a ler sobre coisas das quais muitas vezes nunca tinha ouvido falar. Foi um grande passo para minha libertação do estilo de pensar e viver da classe média. Ainda morava com meus pais quando entrei para,a universidade,e lá nós líamos Freud, Ruth Benedict - seu Patterns of Culture foi um livro muito importante para mim-, Thorstein Veblen, The Theory of the Leisure Class, outra grande experiência. Tive que ler esse livro com o dicionário do lado, pois cada frase continha uma palavra que eu não conhecia. Esses livros, especialmente Benedict e Veblen, abriram a minha cabeça, pois em resumo diziam: "Sua família pode estar um pouco enganada. Há outras maneiras de se pensar a vida. Você não deve se preocupar com seus pais, seus tios e tias e outras pessoas que acham coisas sobre como você deve viver. Faça o que você quiser".

G.V. -Havia muitos judeus na Universidade de Chicago naquela época? - Havia uma piada em Chicago sobre as universidades para onde você poderia ir: se fosse rico, iria para a Northwestern; se fosse inteligente, iria para a Universidade de Chicago; se não fosse nem uma coisa nem outra, iria para a Universidade de Illinois. Muitas universidades particulares, como a Northwestern, tinham naquela época uma cota bastante pequena para judeus, talvez de seis por cento. Isso persistiu até o início dos anos 60, não só na Northwestern como em Columbia, em Harvard. Na Universidade de Chicago não existia isso, e provavelmente por essa razão havia lá mais judeus do que nas outras. E o que aconteceu foi que meus primos, que eram ricos, foram para a Northwestern, e eu, como era inteligente, fui para Chicago... Enquanto estava na Universidade de Chicago, também entrei para o mundo do jazz. Comecei a estudar piano com mais ou menos 12 anos, e ao ir para a universidade conheci um colega "mais velho", um menino de uns vinte anos, que me introduziu nesse novo mundo. Ele tinha um problema cardíaco que o impedira de ir para a guerra, era um bom músico, e graças a seus contatos comecei a trabalhar tocando piano à noite. Tocava intuitivamente, e só mais tarde fui ter algumas aulas com um famoso músico de jazz chamado Lennie Tristano. Mas este foi o outro lado da minha libertação de uma vida de classe média: entrar para o music business, como nós chamávamos. Eu tocava em bares, em lugares onde havia shows de strip-tease. Durante toda a adolescência fiz isso, o que me deu muita independência em relação a meus pais, pois eu ganhava para viver. Não muito, mas ganhava.

G.V. - Você não teve problemas com seus pais? - Tive montes de problemas! Meu pai achava que eu ia acabar levando um tiro num daqueles lugares, pois naturalmente não tinha idéia de como eram. Quando eu estava terminando o college, muito jovem, com 18 anos, estava decidido a deixar a universidade. Tendo em vista a maneira como funcionava a universidade, eu achava que preferia parar por ali. Mas meu pai não queria nem ouvir falar nisso. Na primavera do último ano do college, 1946, resolvi então que continuaria e faria a pós-graduação. Pensei em estudar literatura inglesa, pois gosto de ler e gosto de ficção. Devo dizer que felizmente não segui esse caminho. No meu último período de curso li o livro Black Metropolis, de Horace Cayton e Saint-CIair Drake, um extenso estudo sobre a comunidade negra de Chicago, e fiquei fascinado. O livro me deu uma certa imagem do que seria um antropólogo urbano, e achei aquilo muito romântico. Tinha todas as vantagens da antropologia, sem ser preciso ir a lugares terríveis, comer uma comida horrível e ser devorado por mosquitos. Gostei muito. Mas acontece que não existia um curso de antropologia urbana, e então decidi estudar sociologia. E assim entrei para o Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, para fazer a pós-graduação. Em 1946, logo após o término da guerra, houve uma grande expansão nas universidades americanas. Os jovens que haviam servido o Exército durante a guerra tiveram o direito de ir para a universidade, recebendo ajuda financeira para pagar as anuidades e se manter. Muitos se aproveitaram desse benefício, sem o qual jamais poderiam fazer um curso universitário, e ingressaram não só nos colleges como nos cursos de pós-graduação. Também havia gente que já tinha terminado o college e poderia ter ido para a pós-graduação, mas preferiu continuar no Exército. De qualquer forma o resultado disso foi que um grande número de estudantes entrou para o Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago junto comigo. Acho que éramos uns duzentos, talvez.

G.V. - Essa democratização das universidades americanas trouxe grandes mudanças? - Sim, e há muita pesquisa sobre isso. Houve realmente uma grande mudança. Houve uma proporção muito maior de jovens saindo do curso secundário para o college do que antes. Acho também que ninguém imaginava que haveria um número tão grande de estudantes procurando a pós-graduação, e o resultado foi que os professores ficaram muito sobrecarregados. No Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, que desde muitos anos talvez fosse o mais importante do país, havia dez ou doze professores para aquela quantidade de alunos. Eles ficaram perdidos, sem saber o que fazer, e duas coisas aconteceram em conseqüência disso: uma foi que nós, estudantes, nos ensinávamos. Formávamos um grupo interessante, onde havia pessoas maravilhosas. A outra coisa foi que o Departamento contratou alguns jovens para serem instrutores, para serem assistentes em disciplinas introdutórias. Alguns desses tomaram-se muito conhecidos na sociologia americana, como Tamotsu Shibutani, Albert Reiss Jr., Guy Swanson e outros. Voltando à minha história, naquela época, mesmo entrando para o Departamento de Sociologia, eu não tinha sérias intenções de me tomar sociólogo. Eu tinha a séria intenção de me tornar um grande pianista de jazz. Trabalhava três ou quatro noites por semana em bares e estudava piano horas seguidas, todos os dias. A universidade era uma atividade de lazer, uma espécie de hobby. E isso teve um resultado interessante, porque eu não tinha nenhuma ansiedade em relação aos estudos. Se me saísse bem, ótimo, se não, não tinha importância. Todos os meus amigos se preocupavam, sofriam, e eu não. Lembro que uma vez encontrei no campus Joseph Gusfield, que depois, entre outras coisas, escreveu um trabalho importante sobre a Lei Seca.1 Ele estava carregando uma pilha enorme de livros de psicologia social, e eu perguntei para que era aquilo. Ele me disse que estava estudando para a prova, e eu me espantei, porque todos nós sabíamos que Herbert Blumer, o examinador da matéria, perguntava sempre as mesmas coisas. Bastava estudar um pouco que já dava para fazer a prova. E então Gusfield me disse: "Mas se eu quero ser um grande sociólogo, tenho que ler tudo isto. É importante." Eu só estava preocupado com o suficiente para passar de ano, nunca liguei para provas, nunca me preocupei com tese. Para mim aquilo era uma brincadeira. E assim consegui minha titulação. Acho que consegui tão depressa por isso, porque minha ansiedade estava no piano. Estudei com pessoas como Everett Hughes, Herbert Blumer, Louis Wirth, um pouco com Robert Redfield, Lloyd Warner, o antropólogo. Escrevi minha tese de mestrado sobre os músicos de jazz e foi muito fácil. Tudo o que eu tinha que fazer era manter um diário de campo sobre o que acontecia comigo. Quando chegava em casa, de manhã, fazia minhas anotações. E assim, em 1949 obtive o meu mestrado.

G.V. - Você obteve seu mestrado com 21 anos, e o PhD com 23, o que hoje é excepcional. Mesmo na época era considerado excepcional? - Sim. Mas eu não fui o mais moço.

G.V. - Poderia nos fazer um breve histórico do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, desde as origens até a sua época? - O Departamento de Sociologia começou com a fundação da Universidade de Chicago, em 1895. John D. Rockfeller doou enormes somas para a criação da universidade em Chicago, nova cidade do Meio-Oeste que crescia rapidamente e no final do século tinha entre meio e um milhão de habitantes. Para a época era uma cidade enorme. O Departamento de Sociologia foi fundado por um homem chamado Albion Small, um ministro protestante que vinha da Nova Inglaterra e tinha sido presidente de um pequeno college. Sinall estava bastante familiarizado com a literatura européia existente na época, Simmel e outros, e fundou também uma revista, o American Journal of Sociology. Sua idéia ao criar o Departamento de Sociologia baseava-se no modelo alemão. O PhD havia sido trazido alguns anos antes para os Estados Unidos, para a Universidade John Hopkins, em Baltimore, e visava a formação de verdadeiros scholars segundo o modelo alemão, com a apresentação de uma grande tese e tudo mais. E Small trouxe isso para Chicago. O Departamento de Sociologia de Chicago realmente fundou a ciência da sociologia nos Estados Unidos. Um dos primeiros que lá se formaram foi W. I. Thomas, que ficou famoso pela frase: "Se o homem define situações como reais, elas são reais em suas conseqüências". Isso introduziu a idéia da definição da situação, que é uma espécie de idéia fundamental da sociologia.

G.V. - Só para lembrar, Thomas escreveu, junto com Florian Znaniecki, um famoso livro sobre os camponeses poloneses. - Sim. Thomas escreveu com Znaniecki, que lecionava na Universidade de Illinois, o livro Polish Peasants in Europe and in America. Um grande trabalho de campo sobre os camponeses poloneses na Europa e depois nos Estados Unidos, sobre como eles se ajustaram ao novo país. Havia um grande número de pessoas no Departamento de Sociologia de Chicago interessadas em reformas sociais. A sociologia ali desenvolvida teve um certo caráter teórico, mas também foi muito empírica. Muitas das pesquisas tinham uma forte marca empírica e foram planejadas para lidar com os problemas sociais contemporâneos, tais como pobreza, imigração, assimilação dos grupos imigrantes pela cultura e a sociedade americanas - ou o que quer que fosse isso. Os pesquisadores de Chicago se preocuparam muito com raça, eugenia, reprodução de pessoas com deficiências físicas, debilidade mental, na linha de Lombroso com seus estudos sobre criminalidade, considerando características herdadas biologicamente. Eles estavam interessados principalmente em compreender as condições de vida de todas as pessoas que viviam na cidade. Pessoas como meu pai, que nasceu na virada do século e era filho de imigrantes. De modo que eles pesquisaram com métodos um pouco primitivos, se compararmos com a sofisticação que temos hoje. Mas muita coisa foi feita. Muita literatura européia foi traduzida e publicada no American Journal of Sociology. O mais importante dessa literatura, para mim, era certamente o trabalho de Georg Simmel. Muitos ensaios seus foram traduzidos e publicados por Albion Small. Tenho uma lembrança nítida do tempo em que eu sentava na biblioteca da universidade, antes do advento da xerox, e copiava longos trechos desses artigos, para ler e estudar. Esses livros não estavam disponíveis.

A.A. - A metodologia utilizada pelos primeiros pesquisadores de Chicago foi amplamente difundida, não só no resto dos Estados Unidos como na Europa. Como ocorreu essa difusão? - Na verdade, naquela época não havia metodologia. Isso só veio depois. Nos primeiros tempos as pessoas estavam simplesmente inventando métodos de pesquisa, pois isso era uma coisa que não existia.

G.V. - Você acha que nesses primeiros tempos não havia um projeto consciente de orientação metodológica? - Não havia. Você pode ver isso na maioria dos trabalhos de Thomas. Ele e os demais simplesmente inventaram, criaram métodos para si próprios, autobiografias de camponeses, analisando suas cartas ou fazendo entrevistas. De certo modo isso era muito revolucionário, porque até então a maioria das pesquisas era feita em bibliotecas. Um dos livros anteriores de Thomas mais importantes era um sobre antropologia.2 Mas para escrever esse livro, ele foi para a biblioteca e leu todos os relatos de missionários, negociantes, exploradores, etc. De toda forma, o problema da metodologia não se colocou logo, veio um pouco depois.

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