quinta-feira, 3 de junho de 2010

1414 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


Não, mas por ser sensato. Parece que agora trocamos de papéis: você surge como um
entusiasta que permite ser arrebatado por ilusões, e eu represento as reivindicações da
razão, os direitos do ceticismo. O que você expôs me parece ser construído sobre erros
que, seguindo seu exemplo, eu poderia chamar de ilusões, por traírem de modo
bastante claro a influência de seus desejos. Você prende sua esperança à possibilidade
de que gerações, que não experimentaram a influência das doutrinas religiosas na
primeira infância, alcançarão facilmente a desejada primazia da inteligência sobre a
vida dos instintos. Isso é decerto uma ilusão; nesse aspecto decisivo, a natureza
humana dificilmente tem probabilidade de mudar. Se não estou equivocado –
conhece-se tão pouco sobre as outras civilizações – ainda hoje existem povos que não
se desenvolveram sob a pressão de um sistema religioso e que, contudo, não se
aproximam mais do seu ideal do que do resto. Se você quiser expulsar a religião de
nossa civilização européia, só poderá fazê-lo através de outro sistema de doutrinas, e
esse sistema, desde o início, assumiria todas as características psicológicas da religião
– a mesma santidade, rigidez e intolerância, a mesma proibição do pensamento – para
sua própria defesa. Há que possuir algo desse tipo, a fim de atender aos requisitos da
educação. E é impossível passar sem educação. O caminho que vai da criança de peito
ao homem civilizado é longo; não poucos jovens se desviariam dele e fracassariam no
cumprimento de suas missões na vida, na época correta, se fossem deixados sem
orientação quanto a seu próprio desenvolvimento. As doutrinas que tivessem sido
aplicadas à sua criação, sempre estabeleceriam limites ao pensar de seus anos de
maturidade – que é exatamente o que você censura à religião fazer hoje. Não observa
que se trata de um defeito inato e inestimável de nossa e de qualquer outra civilização,
o fato de impor às crianças, que são movidas pelo instinto e fracas do intelecto, a
tomada de decisões que só a inteligência madura dos adultos pode reivindicar?
A civilização, porém, não pode operar de outro modo, de uma vez que o
desenvolvimento, tão longo quanto as eras, do gênero humano, está comprimido em
uns poucos anos de infância; e é só através de forças emocionais que a criança pode
ser induzida a se assenhorear da tarefa que lhe apresentam. Tais são, portanto, as
perspectivas para sua ‘primazia do intelecto’.
E você não deve ficar surpreso agora que eu perore em favor da retenção do sistema
doutrinal religioso como base da educação e da vida comunal do homem. Trata-se de
um problema prático, e não de uma questão de valor de realidade. Já que, para
preservar nossa civilização, não podemos adiar a influência sobre o indivíduo até que
ele esteja maduro para a civilização (e, ainda assim, muitos nunca estarão), já que
somos obrigados a impor à criança em crescimento um sistema doutrinário que nela
funcione como um axioma que não admita crítica, parece-me que o sistema religioso é,
de longe, o mais apropriado para esse fim. E o é, naturalmente, exatamente por causa
de sua realização de desejo e seu poder consolatório, devido aos quais você reivindica
identificá-lo como sendo ‘ilusão’. Diante da dificuldade de se descobrir qualquer coisa
sobre a realidade – na verdade, da dúvida de saber se nos será possível realmente
descobri-la –, não devemos desprezar o fato de que também as necessidades humanas
são uma realidade e, na verdade, uma realidade importante, uma realidade que nos
interessa especialmente de perto.

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