quinta-feira, 3 de junho de 2010

1438 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


Muito já se conseguiu com o primeiro passo: a humanização da natureza. De forças e
destinos impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem eternamente distantes.
Contudo, se nos elementos se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas
próprias almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma
Vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que
conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente, sentirnos
em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios
psíquicos. Talvez ainda nos achemos indefesos, mas não mais desamparadamente
paralisados; pelo menos, podemos reagir. Talvez, na verdade, sequer nos achemos
indefesos. Contra esses violentos super-homens externos podemos aplicar os mesmos
métodos que empregamos em nossa própria sociedade; podemos tentar conjurá-los,
apaziguá-los, suborná-los e, influenciando-os assim, despojá-los de uma parte de seu
poder. Uma tal substituição da ciência natural pela psicologia não apenas proporciona
alívio imediato, mas também aponta o caminho para um ulterior domínio da situação.
Porque essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade, é
somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de
desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões
para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção
contra os perigos que conhecíamos. Assim, foi natural assemelhar as duas situações.
Aqui, também, o desejar desempenhou seu papel, tal como faz na vida onírica. Aquele
que dorme pode ser tomado por um pressentimento da morte, que ameaça colocá-lo
no túmulo. A elaboração onírica, porém, sabe como selecionar uma condição que
transformará mesmo esse temível evento uma realização de desejo: aquele que sonha
vê-se a si mesmo numa antiga sepultura etrusca a que desceu, feliz por satisfazer seus
interesses arqueológicos. Do mesmo modo, um homem transforma as forças da
natureza não simplesmente em pessoas com quem pode associar-se como com seus
iguais – pois isso não faria justiça à impressão esmagadora que essas forças causam
nele –, mas lhes concede o caráter de um pai. Transforma-as em deuses, seguindo
nisso, como já tentei demonstrar, não apenas um protótipo infantil, mas um protótipo
filogenético.
No decorrer do tempo, fizeram-se as primeiras observações de regularidade e
conformidade à lei nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza
perderam seus traços humanos. O desamparo do homem, porém, permanece e, junto
com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão:
exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino,
particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e
privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.
Contudo, dentro dessas funções há um deslocamento gradual de ênfase. Observou-se
que os fenômenos da natureza se desenvolviam automaticamente, de acordo com as
necessidades internas. Indubitavelmente, os deuses eram os senhores da natureza;
haviam-na disposto para ser como era e agora podiam deixá-la por sua própria conta.
Apenas ocasionalmente, no que se conhece como milagres, intervinham eles em seu
curso, como para tornar claro que não haviam abandonado nada de sua esfera
original de poder. Com referência à distribuição dos destinos, persistia a desagradável
suspeita de que a perplexidade e o desamparo da raça humana não podiam ser
remediados. Era aqui que os deuses se mostravam aptos a falhar. Se eles próprios
haviam criado o Destino, então seus desígnios deviam ser considerados inescrutáveis.
Alvoreceu a noção, no povo mais bem dotado da Antigüidade, de que Moira [o
Destino] alçava-se acima dos deuses e que mesmo estes tinham os seus próprios
destinos. E quanto mais autônoma a natureza se tornava e quanto mais os deuses se
retiravam dela, com mais seriedade todas as expectativas se dirigiram para a terceira
função deles, ou seja, mais a moralidade tornou-se o seu verdadeiro domínio. Ficou
sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da civilização, assistir os
sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em sua vida em conjunto e vigiar o
cumprimento dos preceitos da civilização, a que os homens obedecem de modo tão
imperfeito. Esses próprios preceitos foram creditados com uma origem divina; foram
elevados além da sociedade humana e estendidos à natureza e ao universo.

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