quinta-feira, 3 de junho de 2010

1419 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


Já foram repetidamente indicados (por mim próprio e, particularmente, por Theodor
Reik) os múltiplos pormenores em que a analogia entre religião e neurose obsessiva
pode ser acompanhada, e quantas das peculiaridades e vicissitudes da formação da
religião podem ser entendidas a essa luz. E harmoniza-se bem com isso o fato de os
crentes devotos serem em alto grau salvaguardados do risco de certas enfermidades
neuróticas; sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma
neurose pessoal.
Nosso conhecimento do valor histórico de certas doutrinas religiosas aumenta nosso
respeito por elas, mas não invalida nossa posição, segundo a qual devem deixar de ser
apresentadas como os motivos para os preceitos da civilização. Pelo contrário! Esses
resíduos históricos nos auxiliaram a encarar os ensinamentos religiosos como relíquias
neuróticas, por assim dizer, e agora podemos argüir que provavelmente chegou a
hora, tal como acontece num tratamento analítico, de substituir os efeitos da
repressão pelos resultados da operação racional do intelecto. Podemos prever, mas
dificilmente lamentar, que tal processo de remodelamento não se deterá na renúncia a
transfiguração solene dos preceitos culturais, mas que sua revisão geral resultará em
que muitos deles sejam eliminados. Desse modo, nossa tarefa de reconciliar os homens
com a civilização estará, até um grande ponto, realizada. Não precisamos deplorar a
renúncia à verdade histórica quando apresentamos fundamentos racionais para os
preceitos da civilização. As verdades contidas nas doutrinas religiosas são, afinal de
contas, tão deformadas e sistematicamente disfarçadas, que a massa da humanidade
não pode identificá-las como verdade. O caso é semelhante ao que acontece quando
dizemos a uma criança que os recém-nascidos são trazidos pela cegonha. Aqui,
também estamos contando a verdade sob uma roupagem simbólica, pois sabemos o
que essa ave significa. A criança, porém, não sabe. Escuta apenas a parte deformada
do que dizemos e sente que foi enganada; sabemos com que freqüência sua
desconfiança dos adultos e sua rebeldia têm realmente começo nessa impressão.
Tornamo-nos convencidos de que é melhor evitar esses disfarces simbólicos da
verdade no que contamos às crianças, e não afastar delas um conhecimento do
verdadeiro estado de coisas, comensurado a seu nível intelectual.

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