quinta-feira, 3 de junho de 2010

1442 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


II
Deslizamos, sem nos darmos conta, do campo econômico para o da psicologia. A
princípio, ficamos tentados a procurar as vantagens da civilização na riqueza
disponível e nos regulamentos para sua distribuição. Entretanto, com o
reconhecimento de que toda civilização repousa numa compulsão a trabalhar e numa
renúncia ao instinto, provocando, portanto, inevitavelmente, a oposição dos atingidos
por essas exigências, tornou-se claro que a civilização não pode consistir, principal ou
unicamente na própria riqueza, nos meios de adquiri-la e nas disposições para sua
distribuição, de uma vez que essas coisas são ameaçadas pela rebeldia e pela mania
destrutiva dos participantes da civilização. Junto com a riqueza deparamo-nos agora
com os meios pelos quais a civilização pode ser defendida: medidas de coerção e
outras, que se destinam a reconciliar os homens com ela e a recompensá-los por seus
sacrifícios. Estas últimas podem ser descritas como as vantagens mentais da
civilização.
Em benefício de uma terminologia uniforme, descreveremos como “frustração” o fato
de um instinto não poder ser satisfeito, como “proibição” o regulamento pelo qual
essa frustração é estabelecida, e como “privação” a condição produzida pela
proibição. O primeiro passo consiste em distinguir entre privações que afetam a todos
e privações que não afetam a todos, mas apenas a grupos, classes ou mesmo indivíduos
isolados. As primeiras são as mais antigas; com as proibições que as estabeleceram, a
civilização – quem sabe há quantos milhares de anos? – começou a separar o homem
de sua condição animal primordial. Para nossa surpresa, descobrimos que essas
privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago da hostilidade para com a
civilização. Os desejos instintuais que sob elas padecem, nascem de novo com cada
criança; há uma classe de pessoas, os neuróticos, que reagem a essas frustrações
através de um comportamento associal. Entre esses desejos instintuais encontram-se
os do canibalismo, do incesto e da ânsia de matar. Soa estranho colocar lado a lado
desejos que todos parecem unânimes em repudiar e desejos sobre os quais existe tão
vívida disputa em nossa civilização quanto a sua permissão ou frustração;
psicologicamente, porém, é justificável proceder assim.

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