Mas não damos publicidade a essa explicação racional da proibição do homicídio.
Asseveramos que a proibição foi emitida por Deus. Assim, assumimos a
responsabilidade de adivinhar Suas intenções e descobrimos que Ele também não
gosta que os homens se exterminem uns aos outros. Comportando-nos dessa maneira,
revestimos a proibição cultural de uma solenidade muito especial, mas, ao mesmo
tempo, nos arriscamos a tornar sua observância dependente da crença em Deus. Se
voltarmos atrás, ou seja, se não mais atribuirmos a Deus o que é nossa própria
vontade, e nos contentarmos em fornecer a razão social, então, é verdade, teremos
renunciado à transfiguração da proibição cultural, mas também teremos evitado seu
risco. Contudo, ganhamos algo mais. Através de certo tipo de difusão ou infecção, o
caráter de santidade e inviolabilidade – de pertencer a outro mundo, poder-se-ia dizer
– espalhou-se de certas poucas proibições de vulto para todas as outras
regulamentações, leis e ordenações culturais. Nestas, entretanto, a auréola com
freqüência não parece cair bem; não apenas se invalidam umas às outras por
fornecerem decisões contrárias em épocas e lugares diferentes como também, à parte
isso, apresentam todos os sinais de inadequação humana. É fácil identificar nelas
coisas que só podem ser produto de uma compreensão míope, de uma expressão de
interesses egoisticamente restritos, ou de uma conclusão baseada em premissas
insuficientes. A crítica que não podemos deixar de lhes dirigir também diminui a um
grau muito pouco favorável nosso respeito por outras exigências culturais mais
justificáveis. Visto ser tarefa difícil isolar aquilo que o próprio Deus exigiu, daquilo
que pode ter sua origem remontada à autoridade de um parlamento Todo-Poderoso
ou de um alto judiciário, constituiria vantagem indubitável que abandonássemos Deus
inteiramente e admitíssemos com honestidade a origem puramente humana de todas
as regulamentações e preceitos da civilização. Junto com sua pretensa santidade, esses
mandamentos e leis perderiam também sua rigidez e imutabilidade. As pessoas
compreenderiam que são elaborados, não tanto para dominá-las, mas, pelo contrário,
para servir a seus interesses, e adotariam uma atitude mais amistosa para com eles e,
em vez de visarem à sua abolição, visariam unicamente à sua melhoria. Isso
constituiria um importante avanço no caminho que leva à reconciliação com o fardo
da civilização.
Aqui, porém, nosso apelo em favor da atribuição de motivos puramente racionais aos
preceitos da civilização – isto é, derivá-los da necessidade social – é interrompido por
uma dúvida repentina. Escolhemos como exemplo a origem da proibição do
homicídio. Mas nossa descrição dela concorda com a verdade histórica? Tememos que
não; parece não ser mais do que uma elaboração racionalista. Com o auxílio da
psicanálise, efetuamos um estudo precisamente dessa parte da história cultural da
humanidade, e, baseando-nos nele, somos obrigados a dizer que, na realidade, as
coisas aconteceram de outro modo. Mesmo no homem atual os motivos puramente
racionais pouco podem fazer contra impulsões apaixonadas. Quão mais fracos, então,
eles devem ter sido no animal humano das eras primevas! Talvez seus descendentes
ainda hoje se matassem uns aos outros sem inibição, não fosse o fato de entre aqueles
atos homicidas ter ocorrido um – a morte do pai primitivo – que evocou uma reação
emocional irresistível, com conseqüências momentosas. Foi dele que surgiu o
mandamento. Não matarás. Sob o totemismo, esse mandamento estava restrito ao
substituto paterno, mas posteriormente foi estendido às outras pessoas, embora ainda
hoje não seja universalmente obedecido.
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