quinta-feira, 3 de junho de 2010

1445 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida
humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais – e
desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização –, apresenta, como sabemos,
dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade
que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a
riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os
regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e,
especialmente, a distribuição da riqueza disponível. As duas tendências da civilização
não são independentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as relações mútuas
dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satisfação instintual
que a riqueza existente torna possível; em segundo, porque, individualmente, um
homem pode, ele próprio, vir a funcionar como riqueza em relação a outro homem, na
medida em que a outra pessoa faz uso de sua capacidade de trabalho ou o escolha
como objeto sexual; em terceiro, ademais, porque todo indivíduo é virtualmente
inimigo da civilização, embora se suponha que esta constitui um objeto de interesse
humano universal. É digno de nota que, por pouco que os homens sejam capazes de
existir isoladamente, sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a
civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização,
portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e
ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar uma certa distribuição da
riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade, têm de proteger contra
os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui para a conquista da natureza e a
produção de riqueza. As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a
tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação.
Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma
maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios
de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas dificuldades não são
inerentes à natureza da própria civilização, mas determinadas pelas imperfeições das
formas culturais que até agora se desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar
esses defeitos. Embora a humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu
controle sobre a natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é
possível estabelecer com certeza que um progresso semelhante tenha sido feito no
trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como hoje
novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena defender a pouca
civilização que foi assim adquirida.
Pensar-se-ia ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as
fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos
instintos, de sorte que, imperturbados pela discórdia interna, os homens pudessem
dedicar-se à aquisição da riqueza e à sua fruição. Essa seria a idade de ouro, mas é
discutível se tal estado de coisas pode ser tornado realidade. Parece, antes, que toda
civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto; sequer parece
certo se, caso cessasse a coerção, a maioria dos seres humanos estaria preparada para
empreender o trabalho necessário à aquisição de novas riquezas. Acho que se tem de
levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas
e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas
tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na
sociedade humana.

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