quinta-feira, 3 de junho de 2010

1426 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


VII
Tendo identificado as doutrinas religiosas como ilusões, somos imediatamente
defrontados por outra questão: não poderão ser de natureza semelhante outros
predicados culturais de que fazemos alta opinião e pelos quais deixamos nossas vidas
serem governadas? Não devem as suposições que determinam nossas regulamentações
políticas serem chamadas também de ilusões? E não acontece que, em nossa
civilização, as relações entre os sexos sejam perturbadas por ilusão erótica ou um
certo número dessas ilusões? E, uma vez despertada nossa suspeita, não nos
esquivaremos de também perguntar se nossa convicção de que podemos aprender algo
sobre a realidade externa pelo emprego da observação e do raciocínio no trabalho
científico, possui um fundamento melhor. Nada deveria impedir-nos de dirigir a
observação para nossos próprios eus e de aplicar o pensamento à crítica dele próprio.
Nesse campo, uma série de investigações se abre a nossa frente, cujos resultados não
podem deixar de ser decisivos para a construção de uma “Weltanschauung”.
Imaginamos, ademais, que um esforço desse tipo não seria vão e que, pelo menos em
parte, justificaria nossas suspeitas. O autor, porém, não dispõe dos meios para
empreender tarefa tão abrangente; necessita confinar seu trabalho ao seguimento de
apenas uma dessas ilusões, a saber, a da religião.
Aqui, a alta voz de nosso opositor nos interrompe. É-nos exigido que expliquemos
nossa má ação: “Os interesses arqueológicos são, indubitavelmente, bastante dignos
de elogios, mas ninguém empreende uma escavação se, assim procedendo, solapar as
moradias de pessoas vivas, de maneira que aquelas aluam e soterrem estas sob suas
ruínas. As doutrinas da religião não constituem um tema sobre o qual se possa
tergiversar, como outro qualquer. Nossa civilização se ergue sobre elas e a
manutenção da sociedade humana se baseia na crença da maioria dos homens na
verdade dessas doutrinas. Caso se lhes ensine que não existe um Deus Todo-Poderoso
e justo, nem ordem mundial divina, nem vida futura, se sentirão isentos de toda e
qualquer obrigação de obedecer aos preceitos da civilização. Sem inibição ou temor,
seguirão seus instintos associais e egoístas, e procurarão exercer seu poder; o Caos,
que banimos através de muitos milhares de anos de trabalho civilizatório, mais uma
vez retornará. Mesmo que soubéssemos, e pudéssemos provar, que a religião não se
acha na posse da verdade, deveríamos ocultar esse fato e nos comportarmos da
maneira prescrita pela filosofia do ‘como se’, e isso no interesse da preservação de
todos nós. E, à parte o perigo do empreendimento, seria uma crueldade sem propósito.
Não poucas pessoas encontram sua única consolação nas doutrinas religiosas, e só
conseguem suportar a vida com o auxílio delas. Você as despojaria de seu apoio, sem
ter nada melhor a lhes oferecer em troca. Admite-se que, até agora, a ciência ainda
não conseguiu muita coisa, mas, mesmo que progredisse mais, não bastaria para o
homem. Este possui necessidades imperiosas de outro tipo, que jamais poderiam ser
satisfeitas pela frígida ciência, sendo muito estranho – na verdade, o auge da
incoerência – que um psicólogo, que sempre insistiu em que a inteligência, quando
comparada à vida dos instintos, desempenha apenas um papel de menor vulto nos
assuntos humanos, tente agora despojar a humanidade de uma preciosa realização de
desejos e proponha compensá-la disso com um alimento intelectual”.
Quantas acusações de uma só vez! Não obstante, estou preparado para refutá-las e,
mais ainda, afirmo que a civilização corre um risco muito maior se mantivermos
nossa atual atitude para com a religião do que se a abandonarmos.

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