Tampouco, de modo algum é uniforme a atitude da civilização para com esses antigos
desejos instintuais. Apenas o canibalismo parece ser universalmente proscrito e – para
a opinião não psicanalítica – ter sido completamente dominado. A intensidade dos
desejos incestuosos ainda pode ser detectada por detrás da proibição contra eles, e,
sob certas condições, o matar ainda é praticado, e, na verdade, ordenado, por nossa
civilização. É possível que ainda tenhamos pela frente desenvolvimentos culturais em
que a satisfação de outros desejos, inteiramente permissíveis hoje, parecerá tão
inaceitável quanto, atualmente, o canibalismo.
Essas primeiras renúncias instintuais já envolvem um fator psicológico igualmente
importante para todas as outras renúncias instintuais. Não é verdade que a mente
humana não tenha passado por qualquer desenvolvimento desde os tempos primitivos
e que, em contraste com os avanços da ciência e da tecnologia, seja hoje a mesma que
era nos primórdios da história. Podemos assinalar de imediato um desses progressos
mentais. Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a
coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental
especial, o superego do homem, a assume e a inclui entre seus mandamentos. Toda
criança nos apresenta esse processo de transformação; é só por esse meio que ela se
torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem
cultural muito preciosa no campo psicológico. Aqueles em que se realizou são
transformados de opositores em veículos da civilização. Quanto maior é o seu número
numa unidade cultural, mais segura é a sua altura e mais ela pode passar sem
medidas externas de coerção. Ora, o grau dessa internalização difere grandemente
entre as diversas proibições instintuais. Com referência às primeiras exigências
culturais, que já mencionei, a internalização parece ter sido amplamente conseguida,
se não levarmos em conta a exceção desagradável dos neuróticos. Contudo, o caso se
altera quando nos voltamos para as outras reivindicações instintuais.
Aqui observamos com surpresa e preocupação que a maioria das pessoas obedece às
proibições culturais nesses pontos apenas sob pressão da coerção externa, isto é,
somente onde essa coerção pode fazer-se efetiva e enquanto deve ser temida. Isso
também é verdade quanto ao que é conhecido como sendo as exigências morais da
civilização, que, do mesmo modo, se aplicam a todos. A maioria das experiências que
se tem da infidedignidade moral do homem ocorre nessa categoria. Há incontáveis
pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a praticar incesto, mas
que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou seus desejos
sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira, da
fraude e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente,
foi sempre assim através de muitas épocas da civilização.
Se nos voltarmos para as restrições que só se aplicam a certas classes da sociedade,
encontraremos um estado de coisas que é flagrante e que sempre foi reconhecido. É de
esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e
façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde
isso não for possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro
da cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma
cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus
participantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior – e este é o
caso em todas as culturas atuais –, é compreensível que as pessoas assim oprimidas
desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas
tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma
quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma internalização das proibições
culturais entre as pessoas oprimidas. Pelo contrário, elas não estão preparadas para
reconhecer essas proibições, têm a intenção de destruir a própria cultura e, se
possível, até mesmo aniquilar os postulados em que se baseia. A hostilidade dessas
classes para com civilização é tão evidente, que provocou a mais latente hostilidade
dos estratos sociais mais passíveis de serem desprezados. Não é preciso dizer que uma
civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os
impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva de uma existência
duradoura.
O ponto até o qual os preceitos de uma civilização foram internalizados – ou, para
expressá-lo de modo mais popular e não psicológico, o nível moral de seus
participantes –, não constitui a única forma de riqueza mental que entra em
consideração ao se avaliar o valor de uma civilização. Há, além disso, suas vantagens
sob forma de ideais e criações artísticas, isto é, as satisfações que podem ser derivadas
dessas fontes.
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