quinta-feira, 3 de junho de 2010

1423 O FUTURO DE UMA ILUSÃO


Os sacerdotes, cujo dever era assegurar a obediência à religião, foram a seu encontro
nesse aspecto. A bondade de Deus deve apor uma mão refreadora à Sua justiça.
Alguém peca; faz depois um sacrifício ou se penitencia e fica livre para pecar de novo.
A introspectividade russa atingiu o máximo ao concluir que o pecado é indispensável à
fruição de todas as bênçãos da graça divina, de maneira que, no fundo, o pecado é
agradável a Deus. Não é segredo que os sacerdotes só puderam manter as massas
submissas à religião pela efetivação de concessões tão grandes quanto essas à natureza
instintual do homem. Assim, concluíram: só Deus é forte e bom; o homem é fraco e
pecador. Em todas as épocas, a imoralidade encontrou na religião um apoio não
menor que a moralidade. Se as realizações da religião com respeito à felicidade do
homem, susceptibilidade à cultura e controle moral não são melhores que isso, não
pode deixar de surgir a questão de saber se não estamos superestimando sua
necessidade para a humanidade e se fazemos bem em basearmos nela nossas
exigências culturais. Consideremos a situação inequívoca do presente. Escutamos a
admissão de que a religião não mais possui sobre o povo a mesma influência que
costumava ter. (Estamos aqui interessados na civilização européia cristã.) E isso não
aconteceu por que suas promessas tenham diminuído, mas porque as pessoas as
acham menos críveis. Admitamos que o motivo – embora talvez não o único – para
essa mudança seja o aumento do espírito científico nos estratos mais elevados da
sociedade humana. A crítica desbastou o valor probatório dos documentos religiosos,
a ciência natural demonstrou os erros neles existentes, e a pesquisa comparativa ficou
impressionada pela semelhança fatal existente entre as idéias religiosas que
reverenciamos e os produtos mentais de povos e épocas primitivos.
O espírito científico provoca uma atitude específica para com os assuntos do mundo;
perante os assuntos religiosos, ele se detém um instante, hesita, e, finalmente, cruzalhes
também o limiar. Nesse processo, não há interrupção; quanto maior é o número
de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis, mais difundido é
o afastamento da crença religiosa, a princípio somente de seus ornamentos obsoletos e
objetáveis, mas, depois, também de seus postulados fundamentais. Os americanos que
instituíram o “julgamento do macaco” em Dayton mostraram-se, somente eles,
coerentes. Em todas as outras partes a transição inevitável é realizada através de
meias-medidas e insinceridades.
A civilização pouco tem a temer das pessoas instruídas e dos que trabalham com o
cérebro. Neles, a substituição dos motivos religiosos para o comportamento civilizado
por outros motivos, seculares, se daria discretamente; ademais, essas pessoas são em
grande parte, elas próprias, veículos de civilização. Mas a coisa já é outra com a
grande massa dos não instruídos e oprimidos, que possuem todos os motivos para
serem inimigos da civilização. Enquanto não descobrirem que as pessoas não
acreditam mais em Deus, tudo correrá bem. Mas eles o descobrirão, infalivelmente,
mesmo que este meu trabalho não seja publicado. E estarão prontos a aceitar os
resultados do pensamento científico, mas sem que neles se tenha dado a modificação
que o pensamento científico provoca nas pessoas. Não existe aqui perigo de que a
hostilidade dessas massas à civilização se arremesse contra o ponto fraco que
encontraram naquela que lhe impõe tarefas? Se a única razão pela qual não se deve
matar nosso próximo é porque Deus proibiu e nos punirá severamente por isso nesta
vida ou na vida futura, então, quando descobrirmos que não existe Deus e que não
precisamos temer Seu castigo, certamente mataremos o próximo sem hesitação e só
poderemos ser impedidos de fazê-lo pela força terrena. Desse modo, ou essas massas
perigosas terão de ser muito severamente submetidas e com todo cuidado mantidas
afastadas de qualquer possibilidade de despertar intelectual, ou então o
relacionamento entre civilização e religião terá de sofrer uma revisão fundamental.

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