Contudo, e tal como foi demonstrado por argumentos que não preciso repetir aqui, o
pai primevo constituiu a imagem original de Deus, o modelo a partir do qual as
gerações posteriores deram forma à figura de Deus. Daí a explicação religiosa ser
correta. Deus realmente desempenhou um papel na gênese daquela proibição; foi Sua
influência, e não uma compreensão interna (insight) de necessidade social, que a criou.
E o deslocamento da vontade do homem para Deus é plenamente justificado, pois os
homens sabiam que se tinham livrado do pai através da violência, e, em sua reação a
esse ato ímpio, resolveram respeitar doravante sua vontade. Dessa maneira, a
doutrina religiosa nos conta a verdade histórica – submetida embora, é verdade, a
certa modificação e disfarce –, ao passo que nossa descrição racional não a reconhece.
Observamos agora que o cabedal de idéias religiosas inclui não apenas realizações de
desejos, mas também importantes reminiscências históricas. Essa influência
concorrente de passado e presente tem de conceder à religião uma riqueza de poder
verdadeiramente incomparável. Entretanto, talvez, com o auxílio de uma analogia,
outra descoberta ainda possa começar a alvorecer em nós. Embora não seja boa
política transplantar idéias para longe do solo em que se desenvolveram, há aqui,
contudo, uma consonância que não podemos deixar de apontar. Sabemos que a
criança humana não pode completar com sucesso seu desenvolvimento para o estágio
civilizado sem passar por uma fase de neurose, às vezes mais distinta, outras, menos.
Isso se dá porque muitas exigências instintuais que posteriormente serão
inaproveitáveis não podem ser reprimidas pelo funcionamento racional do intelecto
da criança, mas têm de ser domadas através de atos de repressão, por trás dos quais,
via de regra, se acha o motivo da ansiedade. A maioria dessas neuroses infantis é
superespontaneamente no decurso do crescimento, sendo isso especialmente
verdadeiro quanto às neuroses obsessivas da infância. O remanescente pode ser
eliminado mais tarde ainda, através do tratamento psicanalítico. Exatamente do
mesmo modo, pode-se supor, a humanidade como um todo, em seu desenvolvimento
através das eras, tombou em estados análogos às neuroses, e isso pelos mesmos
motivos – principalmente porque nas épocas de sua ignorância e debilidade
intelectual, as renúncias instintuais indispensáveis à existência comunal do homem só
haviam sido conseguidas pela humanidade através de forças puramente emocionais.
Os precipitados desses processos semelhantes à repressão que se efetuou nos tempos
pré-históricos, ainda permaneceram ligados à civilização por longos períodos. Assim,
a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose
obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o
pai. A ser correta essa conceituação, o afastamento da religião está fadado a ocorrer
com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos
exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento. Nosso
comportamento, portanto, deveria modelar-se no de um professor sensato que não se
opõe a um novo desenvolvimento iminente, mas que procura facilitar-lhe o caminho e
mitigar a violência de sua irrupção. Decerto nossa analogia não esgota a natureza
essencial da religião. Se, por um lado, a religião traz consigo restrições obsessivas,
exatamente como, num indivíduo, faz a neurose obsessiva, por outro, ela abrange um
sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com um repúdio da realidade, tal como
não encontramos, em forma isolada, em parte alguma senão na amência, num estado
de confusão alucinatória beatífica. Mas tudo isso não passa de analogias, com a ajuda
das quais nos esforçamos por compreender um fenômeno social; a patologia do
indivíduo não nos provê de um correspondente plenamente válido.
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